Se me perguntassem qual o momento mais alvissareiro de toda a Reforma processual que vem sendo conduzida ao longo dos últimos anos, certamente responderia que ocorreu quando do advento da Lei 9.800, de 26.05.99, ao conter a previsão de utilização de sistemas de transmissão de dados ("tipo fac-símile ou outro similar") para a prática de atos processuais (art. 1º).
Isso quer dizer que não reconheço avanços no restante do trabalho dos reformadores? Não, absolutamente! Embora as reformas não tenham transformado a feição do processo judicial substancialmente, pois pouco contribuíram para torná-lo um meio de efetivação de uma Justiça rápida e segura (registrando-se aqui como exceção a lei que instituiu os Juizados Especiais), elas foram tecnicamente bem intencionadas e conduzidas.
A diferença entre a Lei 9.800 e as outras leis do conjunto da Reforma processual é que ela foi a primeira a vislumbrar (e admitir) o uso das tecnologias da informação como ferramenta na prática de atos processuais. Pela primeira vez, a lei processual tentou aproveitar a funcionalidade permitida com o avanço das tecnologias da informação. E isso tem um significado verdadeiramente revolucionário, libertador. Sim, porque representa o primeiro passo no caminho da transformação da natureza física do processo judicial.
Embora na teoria jurídica por processo, conceitualmente falando, considere-se apenas o conjunto de atos logicamente encadeados e voltados à prolação da sentença, o atingimento desse seu caráter instrumental nunca se fez dentro da rotina cartorária sem o auxílio de um suporte material. O processo tem seu lado físico; assume a roupagem de um conjunto de folhas de papel agrupadas seguindo a seqüência da cronologia dos atos. Isso porque a documentação em papel desempenha, entre outras funções, a de permitir o registro do ato e que o documento possa ser lido por todos; que fique inalterado a longo do tempo; que possa ser reproduzido por meio da extração de cópias e que possa ser arquivado.
A Lei 9.800, ao permitir a transmissão de peças processuais por meio eletrônico, quebra o elo da corrente de documentos materiais a que estávamos acostumados a assistir na cadeia processual. O correio eletrônico (e-mail) e outras formas de meios eletrônicos de comunicação, a exemplo do EDI (eletronic data interchange), vão passar a fazer parte da rotina de advogados na transmissão de peças processuais aos órgãos judiciários. Na prática, todavia, e pelo menos em um primeiro instante, isso vai significar pouco. É que os tribunais e juízos em nosso país ainda não dispõem de sistemas informáticos que permitam registros eletrônicos. Com poucas exceções, os órgãos do Poder Judiciário não estão equipados com recursos técnicos para tratar o documento eletrônico com a segurança que se exigiria em termos de processo judicial. Para que pelo menos algumas peças do processo judicial pudessem ser convertidas para o meio eletrônico, seria indispensável sistemas de tratamento de documento (eletrônico) para arquivá-las para ulterior consulta e identificar seu(s) signatário(s). Os métodos de documentação nos tribunais, todavia, ainda estão totalmente atrelados às tradicionais fórmulas cartorárias de registros em papel.
Vamos assistir, portanto, a uma fase transitória em que uma boa parcela das informações legalmente significantes vão trafegar em forma de mensagem de dados (data message), para perder a forma eletrônica ao chegar a seu destino, por meio de sua reprodução para a forma tangível e física. Em outras palavras, haverá no início apenas um trânsito de petições em meio eletrônico, as quais, chegando ao destino, serão impressas em papel e anexadas ao processo físico.
De qualquer forma, isso representa um grande avanço e pode ser visto como o passo inicial rumo à virtualização completa do processo judicial. Já pensou a economia de tempo e praticidade que representa, por exemplo, para um advogado, remeter sua petição por e-mail, diretamente de seu escritório, sem precisar de intermediários? E o que é melhor é que a Lei 9.800 estabelece, no seu art. 3º, que "os juízes poderão praticar atos de sua competência à vista de transmissões efetuadas na forma desta Lei". Isso significa que, ao receber a petição transmitida via e-mail, o juiz imediatamente poderá decidir a respeito do que nela se contém, deferindo ou não uma providência, por exemplo. Não é preciso esperar a juntada do documento original (que tem que ser entregue, necessariamente, até cinco dias do término do prazo previsto para o ato, art. 2º) para, só então, manifestar-se sobre o assunto objeto da petição transmitida eletronicamente. Não. O juiz está autorizado (nos termos do citado art. 3º) a conhecer de logo da petição e proferir sua decisão sobre o pedido nela formulado.
Por isso é necessário que os tribunais regulamentem o quanto antes a Lei 9.800, indicando os endereços de correio eletrônico para os quais se devem destinar as petições e estabelecendo que elas devem ser, de imediato, impressas e encaminhadas ao juiz destinatário ou à distribuição. Embora o seu art. 5º desobrigue os órgãos judiciários de dispor de equipamentos de recepção de petições em meio eletrônico, prevendo a implantação desse sistema como mera faculdade (e não como uma obrigação do administrador público), é inconcebível imaginar um presidente de tribunal que não tenha sensibilidade para encarar essa questão como meta optata do serviço judiciário nos dias de hoje. Não só porque não há necessidade de uma estrutura informática complexa para isso - um simples programa instalado em um servidor pode arquivar as mensagens e os remetentes podem ser identificados por meio da leitura de senhas previamente fornecidas. A razão principal consiste na constatação de que o uso dos meios de transmissão eletrônica constituem o único caminho para a democratização da Justiça e seu ajustamento ao ritmo da nova sociedade virtual. O correio eletrônico (e-mail) é instrumento da nossa vida cotidiana; já é possível passar e receber mensagem de correio eletrônico até por meio de telefones celulares. Mesmo quem não tem computador pode ter endereço eletrônico, e acessar sua caixa postal de qualquer lugar, seja de um computador na repartição, na empresa, na casa de um amigo. Não é nem sequer necessário pagar para se ter um, pois existe uma infinidade de sites que oferecem esse serviço de forma gratuita (quem não viu na televisão a propaganda do BOL?)
O que não tem sentido é fazer como a resolução do STF; além de condicionar o despacho do juiz à juntada do original, somente regulamentou a Lei 9.800 no que se refere ao recebimento de petições via fax, com evidente caráter restritivo. O fax hoje é muito menos utilizado que o correio eletrônico. Em breve estará para o e-mail como a máquina de escrever para o computador pessoal.
Recife, 19.12.99
Demócrito Ramos Reinaldo Filho, Juiz de Direito em Pernambuco
Data: 10/01/2007